Filhos e pais se comunicam o dia todo, invadem a vida uns dos outros e, portanto não têm privacidade
Fatos bem estranhos começam a fazer parte de nosso estilo de vida.
Pais contratam detetives para averiguar se o filho está ou não envolvido com drogas. Escolas colocam câmeras em quase todo o seu espaço, para que os alunos possam ser observados pela internet. E, principalmente, o telefone celular tem sido usado para controlar a vida de filhos, namorados, cônjuges.
O celular, hoje, é quase como uma extensão do corpo de muita gente. Jovens não conseguem viver longe dele, crianças já passam a se valer desse aparelho com regularidade e adultos o usam sem a menor parcimônia.
O problema é que o tipo de uso que estamos fazendo dessa tecnologia tem estragado muitos relacionamentos.
Quando os pais estão trabalhando, por exemplo, muitas vezes são interrompidos pelos filhos que querem saber o que comer quando chegam em casa, como resolver um problema na escola, a que horas o trabalho vai terminar.
Do mesmo modo, inclusive quando o filho está na escola, muitos pais ligam querendo saber como as coisas estão indo, se o filho comeu o lanche, se tem companhia na hora do intervalo.
A separação entre pais e filhos em alguns períodos do dia, que permitiria a cada um cuidar da própria vida, está comprometida.
Filhos e pais se comunicam o dia todo, invadem a vida uns dos outros, controlam horários, atividades, companhia, compromissos e, portanto, não têm privacidade. Não é à toa que se esgotam nesses relacionamentos.
E o que dizer, então, dos casais, seja um casal de adolescentes, que ensaiam seus primeiros passos nesse encontro afetivo com o outro, seja de jovens, que experimentam um relacionamento duradouro, ou daqueles que já estabeleceram um compromisso de vida juntos?
Uma adolescente me escreveu contando que sempre adorou usar o celular, porque gosta de falar com as amigas o tempo todo.
Agora que está namorando, sua vida virou um inferno - segundo suas próprias palavras. É que o namorado quer saber, pelo celular, cada passo que ela dá. Isso gera brigas porque, inclusive, ele reclama quando ela fala muito tempo com outra pessoa no aparelho.
E adivinhe, caro leitor, qual a dúvida dela. Ela quer ajuda para decidir se termina o namoro ou deixa de usar o celular! Construímos um dilema contemporâneo dessa maneira, não é verdade?
Nesse mesmo tom, muitos casais controlam a vida um do outro. Quando um deles faz um programa sozinho - como sair com amigos, jantar com colegas de trabalho, fatos naturais na vida de qualquer um-, agora precisa passar todo o roteiro ao seu par, em tempo real. Quem está junto, a que horas chegou em casa, qual o caminho que fez, onde está. Que relacionamento sobrevive a isso?
Controlar a vida dos filhos os ensina a também controlar a vida dos outros. E quem consegue viver controlado o tempo todo? Ninguém, a não ser que não tenha autonomia, não ame a liberdade, não preze a vida própria.
Quem se relaciona com o outro de modo possessivo ou permite ser objeto de posse do outro não consegue sustentar tal relacionamento por muito tempo.
O telefone celular pode contribuir para o desenvolvimento de muitas competências pessoais, estreitar relacionamentos. Vamos escolher usar de um modo que, em vez disso tudo, vai prejudicar os relacionamentos que tentamos manter vivos? É uma escolha muito insensata, não é?
ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de
"Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)