quinta-feira, 28 de julho de 2011

Mudança de Comportamento

Artigo publicado no Caderno Equilíbrio, do jornal da Folha de S.Paulo, de 26/07/2011:

Na crise dos seis anos, a criança manifesta sua angústia por meio de rebeldia, dependência e medo

MUITOS PAIS de crianças entre cinco e sete anos estão estranhando suas atitudes. "Minha filha está irreconhecível, fala palavrão e me desobedece", escreveu uma mãe. "Meu filho está com comportamento adolescente, se rebela contra mim o tempo todo", testemunhou outra.

É verdade: nessa fase da vida ocorrem mudanças. Algumas vezes reaparecem situações que aparentemente já haviam sido superadas. O medo, por exemplo.

A criança pequena expressa medo com frequência: do escuro, da bruxa, de ficar sem a mãe, de uma determinada música ou de um animal. Aos poucos, com o apoio firme dos pais, deixa de mostrar esse estado afetivo com tanta facilidade. Talvez não deixe de sentir medo, mas o enfrenta com recursos construídos ao longo do tempo.

Mas, perto dos cinco, seis anos, o medo pode voltar a aparecer. A criança tem pesadelos e, no meio da noite, se desespera, procurando a cama dos pais ou a companhia de um deles em seu quarto. E os pais que têm filhos nessa fase sabem muito bem o que significa procurar: se parece mais com exigir. Ah! E como os filhos sabem fazer isso bem, não é verdade?

Outro fato comum na vida da criança nessa idade é a necessidade da ajuda dos pais (da mãe, principalmente) para fazer coisas que, antes, fazia muito bem sozinha.

A mãe de uma garotinha de seis anos contou que, agora, toda santa noite, a filha choraminga para colocar o pijama, diz que não consegue trocar a roupa sozinha. Alguém duvida que a garota consegue fazer a mãe colocar o pijama nela?

Por que isso acontece? Entender o contexto desse momento do desenvolvimento infantil talvez melhore o relacionamento entre pais e filhos. Por isso, vamos pensar um pouco nessas crianças.

O primeiro fato importante a ser lembrado é que essa idade sinaliza uma passagem: a da primeira infância para a segunda -e derradeira- parte dela. Isso a criança intui com precisão.

Caro leitor, você acha que é fácil despedir-se dos primeiros seis anos de vida?

Não, não é nem um pouco fácil perder a segurança, mesmo que ilusória, transmitida pela presença constante dos pais. E a criança sabe que, a partir de então, terá de começar a caminhar na vida com suas próprias pernas.

É isso que significa crescer, fato que irá dominar a vida da criança a partir dos sete anos, mais ou menos.

A criança vive, então, uma crise por volta dos seis anos. E o modo que ela tem de expressar o que sente, mesmo sem entender muito bem, é mudando seu comportamento. Muitas ficam bravas com seus pais, como bem contaram nossas leitoras citadas. O problema é entender essa braveza como manifestação de agressividade, como muitos pais fazem.

A criança fica brava com os pais porque sente que está para perdê-los, esse é o ponto principal. E reagir ao comportamento do filho de modo igualmente bravo -colocar de castigo, punir, reclamar- tem sido bem comum.

Se os pais entenderem que a rebeldia, a desobediência, a dependência e o medo que a criança manifesta nada mais são do que sinais da angústia da separação que está por vir, poderão aquietar o filho com mais paciência, mais carinho, mais firmeza e tranquilidade.

E isso é tudo o que a criança precisa para saber que seus pais aceitam seu crescimento. E que irá contar com eles - em todos os sentidos- na continuidade de sua trajetória de vida.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de
"Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

Filhos Prediletos e Na ficção, preferências são assumidas

Matérias do dia 19/07/2011, do Caderno Equilíbrio, do jornal Folha de S.Paulo:

É normal, acontece na maioria das famílias, mas os pais nunca admitem suas escolhas, o que pode complicar as coisas

IARA BIDERMAN
DE SÃO PAULO


Você não faz diferença entre seus filhos. Mentira, dizem psiquiatras, psicanalistas e psicólogos.

Como eles são do ramo e têm material para refletir sobre as histórias de milhares de famílias (tão iguais quanto diferentes da sua), não dá para descartar essa opinião -como somos tentados a fazer se um dos filhos reclama que o outro é o queridinho.

"A maioria dos pais, se não todos, tem um filho preferido", diz à Folha a psicóloga americana Ellen Libby, do alto de sua experiência de 35 anos atendendo em consultório e no centro de saúde mental da Universidade de Maryland. "Mas são raros os que admitem isso", acrescenta ela, que é autora do livro "The Favorite Child" (sem edição em português).

Antes que algum pai ou mãe se sinta culpado, é bom saber que para ela, como para outros especialistas ouvidos, não há nada de errado com a preferência em si.

"A pessoa não gosta nem de si mesmo todo o dia de forma igual, é impossível gostar igual de dois filhos diferentes", diz o psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes.

Faz sentido, mas a lógica não é suficiente para fazer com que pais ou mães se disponham a escancarar esse assunto.

Para a terapeuta de família Tai Castilho, a dificuldade é criada por que acreditamos (ou queremos acreditar) nos mitos da família eternamente feliz e do amor exclusivamente doador.

AMOR EM PARTES
Forbes complica um pouco mais as coisas, dividindo o amor dos pais pelos filhos em duas partes, uma indecifrável e outra compreensível.

"O indecifrável é um amor sem palavras, é aquele que faz com que a pessoa dê sua vida pelo outro. Hoje, é quase risível dizer que você morreria pela revolução, mas não o é morrer para um filho, coisa muito mais delicada e próxima a você. O pai ou a mãe morrem por qualquer filho, é o amor que não distingue."

Desse ponto de vista, não conseguimos conceber uma das crias como a preferida. Mas há outra parte na divisão, a do amor compreensível. Tem a ver com opções, gostos, comportamento.

"Todas essas características vão fazer com que o pai ou a mãe tenham maior afinidade com um ou outro filho. Afinidade quer dizer compartilhar dos mesmos fins. Se gostamos dos mesmos programas, vamos passar mais tempo juntos. Isso depende do gosto e não adianta reclamar, porque é assim mesmo que é a vida."

Nessa parte, gostar igualmente de todos significaria que todos deveriam ser iguais. Algo que não cabe mais no mundo moderno, segundo Forbes.

"Hoje, valorizamos as diferenças. A primeira negociação entre pais e filhos é legitimar as diferenças."

Isso inclui reconhecer a preferência por passar mais tempo conversando com um filho que gosta dos mesmos temas que você ou ser menos exigente com o que se compromete mais com as coisas.

"Favoritismo é escolha, mas, na maioria das vezes, é irracional: reflete nossas necessidades em determinada época, depende de como o filho responde a elas e da química que se forma entre a criança e o adulto", diz Libby.

Escolher sem conseguir explicar racionalmente os motivos incomoda. "Essa história de gostar igual tira a culpa de reconhecer que você tem maior afinidade por um filho", diz Castilho.

DRAMA PARA TODOS
E haja culpa. O escritor Milton Hatoum, autor de "Dois Irmãos" (Cia. das Letras, 272 págs., R$ 42,50) em que a preferência explícita da mãe por um dos filhos gêmeos desencadeia o drama familiar, conta que já foi abordado por leitoras que não conseguiram terminar de ler o livro.

"A escolha [do preferido] é um sofrimento para a mãe, para o escolhido e para o preterido. É um drama para todos e um dos grandes temas do romance moderno."

Nem sempre termina em tragédia. Para Libby, ser o queridinho ou queridinha de um dos pais pode beneficiar a criança, aumentando sua autoestima, confiança e garra para atingir seus objetivos.

A pergunta que não quer calar: se for assim, os que orbitam em torno do favorito seriam desfavorecidos no desenvolvimento da autoconfiança e outros características desejáveis?

Segundo Libby, isso não acontece se, primeiro, os pais forem honestos consigo mesmos e reconhecerem as preferências; segundo, se estiverem abertos para ouvir críticas quando estão privilegiando demais um dos rebentos e, terceiro, escolherem cada vez um filho diferente para ser o queridinho.

"Cada filho nasce em um momento da história do casal e da família. Dependendo do momento, é mais fácil [para os pais] se identificar com um bebê ou com uma criança mais crescida", diz Castilho.

Uma boa estratégia, segundo ela, é falar para cada um dos filhos que ele é o preferido. "Todo mundo quer esse papel."

Até porque a posição traz vantagens imediatas. O estudante Bruno Figueiredo dos Santos, 21, se reconhece como o queridinho da mãe. "Sou mimado [por ela] e gosto. O lado ruim são as gozações de meus irmãos."

A mãe, Ira Figueiredo dos Santos, 45, diz que os irmãos Rafael, 23, e Luisa, 13, têm essa mania. "Dizem que só faço algumas coisas para o Bruno. Ele foi caçula por sete anos, o mais novo sempre tem um mimo à parte."

Mas há, na família, outros prediletos. Se Bruno é o da mãe, Rafael é apontado como preferido do pai. Já a mais nova é a favorita de todos, dizem eles. "Até a cachorra mima a Luisa", diz o pai, o economista Januário Figueiredo dos Santos, 51.

Dar atenção ao que os outros filhos estão dizendo, mesmo em brincadeiras, é uma forma de ajustar os excessos que podem anular os benefícios de ser o preferido.

Excessivo é, por exemplo, ter sempre o mesmo filho e só um dos pais como atores fixos e quase eternos do relacionamento privilegiado.

"Quando a posição é fixa, o preferido, seus irmãos e os pais perdem a possibilidade de experimentar outros papéis e crescer", diz a psicanalista Leda Bolchi Spessoto.

Muitas vezes, é mais fácil para aquele que não é o predileto tornar-se independente. Isso é uma das poucas vantagens que a estudante Fernanda Macedo, 20, reconhece em sua situação. Ela afirma que sua mãe prefere a outra filha, mais velha. Mariângela, a mãe, insiste que não é uma questão de privilégios, mas que afinidades existem.

PREJUÍZOS
Ellen Libby afirma que, na maioria das famílias, não são as preferências "naturais" que vão causar problemas para os filhos na vida adulta.

"O prejudicial é quando o filho escolhido tem o papel de preencher um vazio do adulto e substituir o companheiro do pai ou da mãe. É o antigo mito de Édipo, que mata o pai e se casa com a mãe, ou sua contrapartida feminina, Electra."

Outro prejuízo é a transformação do queridinho em uma pessoa manipuladora e que se acha no direito de receber tudo, sem dar nada em troca.

"A criança preferida é a que dá prazer ao adulto que mais a interessa. Aprende a agradar para ter mais privilégios e menos deveres", afirma a psicóloga Libby.

Se a escolha do filho favorito é o reflexo de um narcisismo exagerado dos pais, sobra problema para todo mundo, diz Forbes.

"É quando o adulto só consegue manifestar carinho para aquele filho que é seu espelho. O filho que não recebe atenção causa 'problemas' e é visto pelos pais como retrato do próprio insucesso."

Na ficção, preferências são assumidas

JULIANA CUNHA
DE SÃO PAULO

A barra da saia materna é um grande cenário da ficção. O narrador de "Em Busca do Tempo Perdido" (1913), do francês Marcel Proust (1871-1922), fica por lá em boa parte dos sete volumes da saga.

Se a disputa pela barra se dá entre irmãos, pais escolhem um lado sem constrangimentos. É o que faz a "yiddishe mame" de "O Complexo de Portnoy" (1969), do americano Philip Roth. Enquanto o filho Alex é considerado muito inteligente, sua irmã, Hannah, é descrita como uma gordinha burra, porém esforçada. "A criança não é nenhum gênio, mas nós não pedimos a Deus o impossível", diz a mãe.

Mas quem fica com complexos profundos por conta dessa relação e sempre decepciona os pais é o protegido, não a "esforçada".

Esaú e Jacó, tanto na "Bíblia" quanto no romance de Machado de Assis (1839 - 1908), são outro exemplo de disputa fraterna. Se na "Bíblia" a confusão acontece porque a mãe tenta beneficiar o mais novo (Jacó) em detrimento do mais velho (Esaú), que teria mais direitos, em Machado o jogo é invertido. A disputa é política. A mãe, agora, é o Estado, em uma época em que valores como a supremacia do mais velho não têm a mesma validade.

Mas, como a escritora inglesa Jane Austen (1775 -1817) é otimista, também há casos em que a predileção acontece sem maiores consequências. Em "Orgulho e Preconceito" (1813), o pai adora a filha Elizabeth e a mãe protege Kitty e Lydia. Todas, no entanto, se amam, se casam e são felizes no final.